Quando Camus faz seu irresistível personagem Meursault, de O estrangeiro, assassinar um árabe na praia ‘por causa do Sol’ e, com a mesma gratuidade, o leva a assistir ao enterro da mãe, ir ao cinema e ajudar um amigo num caso obscuro, ele apenas desvela uma das mais temerárias facetas da nossa existência: o absurdo.
Podemos falar da crise econômica que se abateu sobre o mundo globalizado como um desses absurdos tão caros a Camus e aos existencialistas franceses? Que melhor definição pode ser aplicada à situação de um casal idoso que pôs suas economias, durante décadas, numa instituição financeira, com o fim de ter uma velhice confortável, ao receber a notícia de que perdeu tudo na crise?
Não é possível aquilatar se a dor que se abate sobre um operário, que perdeu seu trabalho, tem a mesma intensidade que a do empresário que vê seu patrimônio escorrer entre os dedos. Ou aquela família que teve de abandonar a própria casa por inadimplência e a do casal de idosos mencionado. Aqui talvez pudéssemos citar Tolstoi na abertura do seu romance Ana Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.
A crise chegou. As pessoas perdem seus bens. Empresas vão à falência. Milhares estão desempregados. Há desesperança onde quer que repouse o olhar. A insegurança, filha espúria do absurdo globalizado, bateu à porta. Há decepção e descrença. É quase impossível abstrair que, por trás da bancarrota, há uma cabeça de medusa e seus mil tentáculos que responde pelo insípido nome de “sistema”. A cada uma das vítimas adiciona-se o peso do fracasso pessoal, da impotência e da culpa. Não somos, entretanto, individualmente responsáveis pelo absurdo que se avizinhou de forma sorrateira, pegando-nos de surpresa. Batemos no próprio peito assumindo para nós mesmos as conseqüências do fracasso. Poucos percebem que estamos inseridos num sistema de bases movediças. Não houve entre nós quem tivesse a sensibilidade aguçada do elefante que previu o tsunami com antecedência de horas. Uma multidão de especialistas não o fez. E se o tivessem feito, mudaria alguma coisa?
Não me parece que, se assim fosse, o resultado seria diferente. Ninguém estava a postos para fazer previsões desse quilate. Pensávamos apenas em concorrer, disputar, vencer, chegar lá, e jogamos todas as fichas nesse ambicioso projeto.
É possível fazer previsão realista para as conseqüências da crise econômica na saúde física e mental das suas vítimas? Quantos ataques cardíacos poderão ocorrer por causa disso? Quem se tornará hipertenso, ansioso, depressivo. E os que terão ataques de pânico? Quantos suicídios serão computados na sombria contabilidade da crise econômica? Também neste pormenor não há especialista capaz de fazer previsão. A crise econômica não faz bem a ninguém. Maltrata a todos, direta ou indiretamente.
O executivo que perdeu suas regalias na crise é acometido subitamente de forte opressão no peito. Um manto de suor recobre seu rosto. Sua pele torna-se pálida e a respiração é ofegante. Em alguns minutos é conduzido a um pronto-socorro. Os exames não revelaram nenhuma alteração. O cardiologista calmamente informa-lhe o diagnóstico: “Sua saúde física está em ótimo estado. Seu problema é psicológico”. Cenas como essa são reproduzidas diariamente em hospitais de todo o mundo.
Mas é um erro interpretar esse tipo de ocorrência como mero “problema psicológico”, pois essa postura minimiza a importância dos efeitos da mente sobre o corpo. Só nos Estados Unidos, 1,5 milhão de pessoas sofre ataque cardíaco por ano. É difícil determinar quantos desses eventos devem ser atribuídos ao estresse. Uma equipe de pesquisadores da University College London fez uma ampla revisão em questionários aplicados a pessoas que sofreram ataques cardíacos entre 1974 e 2004 e compilou respostas dadas à seguinte questão: “O que você estava fazendo ou sentindo nas horas que antecederam o ataque cardíaco?”. Estresse emocional estava entre as respostas mais comuns.
O que fazer para amenizar o impacto da crise econômica na vida cotidiana?
Para alguns, o abandono do ato de fumar, a redução no consumo de café e adoção de dietas ricas em legumes e frutas, em detrimento de excessivo consumo de carne vermelha, estão entre eles. Há uma lista que pode parecer clichê, mas que não deve ser subestimada. Ampliar o interesse por temas elevados, por cultura, boas leituras, música, artes em geral. Procurar o convívio de pessoas mais sábias, aproximar-se mais dos verdadeiros amigos e das pessoas queridas. Talvez devêssemos incluir aí um pouco de filosofia, quem sabe até mesmo religião em doses adequadas.
Mas há algo, amplamente desenvolvido entre os animais, particularmente entre os chimpanzés, que deveríamos retomar como uma das formas de enfrentar o absurdo que nos espreita a cada dia: altruísmo, ou o retorno à indignação ética.
*Scientific American
01/07/2010
Crise Econômica e Absurdo Filosófico
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